São Francisco / Cândido Portinari
“Nesta vida morrer
não é difícil. O difícil é
a vida e o ofício de viver. ”
(Vladimir
Maiakóvski)
"Existem alguns neuróticos em quem, a julgar por todas
as suas reações, o instinto de autopreservação na realidade foi invertido. Eles
parecem visar a nada mais que à autolesão e à autodestruição. É possível
também que as pessoas que, de fato, terminam por cometer suicídio pertençam a
esse grupo. É de se presumir que, em tais pessoas, efetuaram-se defusões de
instinto de grandes consequências, em consequência do que houve uma liberação
de quantidades excessivas do instinto destrutivo voltado para dentro. Os
pacientes dessa espécie não podem tolerar o restabelecimento mediante o nosso
tratamento e lutam contra ele com todas as suas forças. Mas temos de confessar
que se trata de caso que ainda não conseguimos explicar completamente."
(Freud em "Moisés e o Monoteísmo", 1938)
RESUMO: Estima-se que aproximadamente um milhão de pessoas comete suicídio anualmente, índice alarmante que fez a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevar o suicídio à categoria de grave problema da saúde pública. E como a maior parte da população no mundo professa algum tipo de religião, tornam-se relevantes ensaios e estudos sobre a relação entre religião e suicídio. Nos ensaios de Dostoiévski encontramos um dos mais célebres argumentos filosóficos sobre a crença na imortalidade da alma como fator de proteção ao comportamento suicida. Crenças religiosas que, de fato, diversas pesquisas científicas no campo da suicidologia têm apontado como importantes fatores de proteção. Embora ressalvando o valor dessas pesquisas, nesse ensaio o autor procura apresentar argumentos ressaltando a importância também da dúvida como fator de proteção ao suicídio.
PALAVRAS-CHAVE: suicídio,
imortalidade da alma, dúvida
Não sei entender o suicídio de uma outra forma senão como uma psicose. Não apenas como um surto, um instante de crise em que o indivíduo está “fora de si” e, por isso, se ataca procurando aniquilar-se. Mas como um movimento delirante cuja evolução vai distanciando a pessoa da realidade e de si mesma, em um crescendo, impermeabilizando-a da influência contrária às suas ideações suicidas, seus argumentos e decisão de matar-se; distanciando-a de seus apoios sociais, de seus familiares, do afeto dos amigos, anulando todo suporte pessoal e isolando-a em suas próprias ideias, convicções e impulsos autodestrutivos, tornando-a inexpugnável até o desfecho trágico de pôr fim a sua própria vida.
É
simplismo falar em egoísmo na decisão daquele que se mata, ao não pensar no
sofrimento dos que ficam. Porque no auge da dor emocional insuportável que
carrega, sua única e delirante vontade passa a ser o de livrar-se dessa dor.
Não há futuro, esperança, solução que não seja a sua própria morte.
De
fora podemos até mesmo analisá-la como uma decisão equivocada, porque, como
afirmam os especialistas:
“...
O suicida não está querendo necessariamente matar-se, mas matar uma parte de si
mesmo. No entanto, isso é impossível, e ele, como que num engano, acaba
matando-se e morrendo inteiro”. (Cassorla, 1994).
E
na ambivalência feroz em que se encontra mergulhado, os núcleos e componentes
psicóticos de sua personalidade acabam dominando suas partes sadias e racionais
e o indivíduo acaba concretizando o ato.
Entretanto
o movimento é esse: de isolamento, de impermeabilização cognitiva e emocional,
num solipsismo doentio e cada vez mais profundo até o desfecho de sua
autoeliminação. Quem já teve alguém bem próximo, profissionalmente, um
paciente, ou um amigo ou parente que já fez uma tentativa de suicídio ou
perpetrou sua própria morte, se fizer agora uma autópsia psicológica primária
vai reconhecer que o movimento é exatamente esse. E cujo fim, no final das
contas, é deixar a todos a sua volta numa sensação abismal de choque,
impotência e culpa porque julgam que algo mais deveriam ter feito para evitar a
tragédia. Não sem motivos o termo “sobreviventes” foi cunhado para designar a
esses que ficam...
O
escritor russo Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881), em dois artigos escritos em
1876, na obra Diário de um Escritor, sustenta a tese de que é a crença
na imortalidade da alma individual que sustaria esse movimento, porque –
paradoxalmente – essa crença funcionaria como uma força de atração
gravitacional a nos manter vivos e a prender nossa existência à Terra.
Vejamos
alguns trechos principais de seus artigos que servirão para nossas análises:
“Meu
artigo é relativo à ideia mais elevada da vida humana: a necessidade, a
indispensabilidade da crença na imortalidade da alma. Quis dizer que sem essa crença
a vida humana se torna ininteligível e insuportável”.
Outro,
e o mais importante:
“Em
resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável
para o homem que apenas se elevou acima das sensações comuns. Ao contrário, a
ideia da imortalidade da alma, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais
fortemente à Terra. Nisto parece existir contradição. Se, distinta da vida
terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui em baixo?
Mas somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da
vida sobre a Terra. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem
em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz
incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão
necessária à vida humana é por ser o estado normal da Humanidade, provando que
a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a
primeira fonte de verdade e consciência real para a Humanidade”.
Por
fim:
“Disse
N. P., que semelhante confissão em meu Diário constitui anacronismo
ridículo, porque estamos atualmente no século das “ideias de ferro”, das ideias
positivas; no século da “vida sobretudo”. Por isso, sem dúvida, aumentou tanto
o número de suicidas entre pessoas inteligentes e cultas. ”
“Onde,
então, está o mal? Em que se enganou? O mal está em ter perdido a fé na
imortalidade da alma. ”
De
acordo com Dostoiévski o homem sem fé, destituído de crença, estaria livre para
soltar as amarras da âncora
gravitacional que o prendem à vida uma vez que se a imortalidade não existe
e a vida resume-se em ser uma transição entre um nada anterior
ao nascimento e o nada depois da morte, tudo se lhe permite.
Isto é, se é o nada mesmo que nos espera por que não acabar com a vida quando
na balança da existência o prato do sofrimento é mais pesado e encontra-se em
vantagem sobre o prato do prazer, da alegria de viver e das realizações
consistentes?
Essa
tese de Dostoiévski: a crença na imortalidade da alma como fator impeditivo do
suicídio em que o medo do desconhecido é maior do que o medo de enfrentar o
aqui e agora é confirmada, às vezes, no depoimento de alguns pacientes. Uma
paciente espírita kardecista que sofre de um transtorno depressivo maior, em um
período de crise e de ideação suicida obsessiva, certa vez me disse:
“O que me impede de me matar
nessas horas não é o amor que sinto pelo meu marido e a minha filha, e que eu
sei ser retribuído porque eles me amam também. É uma coisa tão louca que nesses
momentos o que me impede realmente é a religião. Eu não sei o que vou
encontrar. Não sei se o inferno de lá é pior do que o inferno de cá”.
Dados
fornecidos por pesquisas sobre a epidemiologia do suicídio, estudos ecológicos
– estudos que não levam em conta variáveis de cada indivíduo, mas sim de países
inteiros - apontam que a religião, de fato, aprece como um mecanismo de proteção
contra o comportamento suicida:
“Um
estudo mais detalhado sobre o impacto dos comportamentos e das crenças
religiosas de 26 países nas taxas de suicídio foi conduzido por Neeleman e
Lewis. Os autores demonstraram que não só a religião declarada, mas também a
intensidade da participação nas atividades religiosas, a religiosidade e a
criação religiosa apresentaram associações negativas com as taxas de suicídio,
um efeito mais evidente (a associação negativa com o suicídio) em países menos
religiosos em média”. (Correa e Barrero, 2006, pág. 19).
Botega
e outros (2006) em uma pesquisa no qual apontam quais são os fatores de
proteção e de risco à ocorrência do suicídio, destacando os pontos mais comuns
presentes nos planos nacionais de prevenção ao suicídio de vários países,
confirmam também essa importância da religiosidade:
“A
prevenção do suicídio, faz-se por meio do reforço dos fatores ditos protetores
e diminuição dos fatores de risco, tanto no nível individual como coletivo.
Entre os primeiros, podemos citar bons vínculos afetivos, sensação de estar
integrado a um grupo ou comunidade, religiosidade, estar casado ou com
companheiro fixo, ter filhos pequenos. Pessoas com maior envolvimento religioso
de um modo geral possuem menores taxas de suicídios. A religiosidade também
auxilia no enfrentamento de doenças graves. Entre os muçulmanos as taxas de
suicídio são mais baixas quando comparadas às outras religiões, provavelmente
por causa do pesado julgamento moral sobre o suicídio e consequente senso de
punição, além de outras características culturais, como por exemplo, a
proibição do consumo de álcool.” (Botega e outros, PSICO, Porto Alegre, PUCRS,
v. 37, n. 3, pp. 213-220, set./dez. 2006).
Igualmente
estudos sobre resiliência têm apontado a religião como um fator que, para uma
pessoa em particular pode contribuir para impedir o movimento que leva ao ato
suicida.
É
necessário reconhecer, no entanto, que muitas fantasias religiosas percorrem o
imaginário de muitos dos que se matam. Análises de cartas e bilhetes, nas assim
chamadas “mensagens de adeus” (Dias, 1991), deixados por suicidas são
esclarecedoras sobre o conteúdo religioso a respeito da morte e do que se
espera encontrar do outro lado. Esses depoimentos mostram como, para alguns, a
morte simplesmente é negada como forma de desaparecimento real e acreditam
verdadeiramente que continuarão vivos; para outros, a morte é vista como
possibilidade de reencontro com aqueles que foram antes, parentes e pessoas amadas
ou ainda como forma de libertação de uma situação humana muito difícil e de
renascimento pós-morte. Ideias que configuram simbolicamente a ligação com uma
religiosidade, onde:
“a
finitude humana é substituída por uma noção de entrada para a eternidade
desejada na vida, e a vivência do sujeito suicida parece coincidir com a
transposição de uma porta para um estado também vivo” (Dias, 1991).
E
cuja situação em quase nada se diferenciará da vida atual.
Portanto,
é preciso considerar que na ambivalência característica do comportamento
suicida, muitos travam uma batalha íntima, avassaladora, com suas crenças e
valores opostos e negadores do ato, até enfim consumá-lo. De qualquer forma, e
é o que a tese de Dostoiévski advogaria, um programa fecundo de prevenção do
suicídio deveria conter o item da âncora gravitacional da crença religiosa –
como fator de proteção – porque mesmo sendo resultado de um movimento e de uma
decisão íntima e pessoal, os estudos
demonstram, desde as pesquisas realizadas pelo sociólogo francês Èmile Durkheim
(1858-1917) com a publicação de seu livro O Suicídio, a existência
de uma interação entre os valores individuais e a cultura na qual estamos
inseridos, comprovando a influência do meio social e da religião sobre as taxas
de suicídio, seja propiciando a facilitação de sua ocorrência, seja como
limitantes.
Muito
bem, mas o quê isso significaria? O impeditivo do suicídio para alguém em
sofrimento insuportável seria apenas substituir uma morte, a real, por outra, a
morte em vida, o que já é o cotidiano que precede a vida dos que se matam.
Então o problema principal continuaria não resolvido. A pulsão famélica de
morte, não saciada, furiosamente permaneceria a fazer seus estragos.
Então
não seria talvez mais digno estendermos para os que se encontram afundados
nesse delírio opressivo os mesmos direitos que se defende para os pacientes de
doenças terminais? Por que não lhes permitir uma morte digna, assistida, já que
a sua condição mental e emocional é a de um moribundo para o qual já não existe
mais vida? Diante da dor terrível que carregam, sem nenhuma esperança de
solução para eles, uma morte precoce não seria uma alternativa razoável? E
nesse caso a vontade de morrer já se encontra instalada, estruturada,
metabolizada pela personalidade. Dessa forma, por que não ter o direito
fundamental de decidir sobre a sua própria vida?
Perguntas
como essas trazem implicações filosóficas, teológicas, éticas e legais muito
amplas e sérias. São questionamentos que provocam nossos valores pessoais,
crenças e visões de mundo para além da esfera estritamente profissional do
psicólogo que, cotidianamente, recebe em seu consultório pessoas com intenção
de suicídio. Trata-se de um questionamento sobre se temos ou não o direito de
tirar a própria vida!
Bem,
então, como eu vejo o suicídio? Primeiro, como um profissional da área de saúde
mental o meu posicionamento explicitamente é o de oposição ao suicídio. E penso
que essa perspectiva de enxergar o suicídio como um ato negativo, como
comportamento anormal, como algo que deve ser prevenido, tratado e evitado é um
paradigma comum a todos os profissionais que atuam no campo da saúde mental.
Não fosse assim não estariam em movimento todo um arsenal de pesquisas
biomédicas, farmacológicas, de compreensão do fenômeno do suicídio, programas
de prevenção, atenção primária e de ações psicoterápicas para combatê-lo e
procurar diminuir sua incidência, que cada vez mais se agiganta no mundo atual.
Segundo,
algumas crenças religiosas fazem parte da minha identidade própria como pessoa.
Algo do que sou tem seus fundamentos, se construiu e edificou em função desses
valores e crenças, sendo que a noção de imortalidade da alma é uma delas.
Entretanto, fique claro, profissionalmente não me cabe – até porque esta
restrição está escrita no código de ética do psicólogo – impingir meus próprios
valores religiosos aos pacientes que me solicitam ajuda.
Entretanto,
se não faço uma elegia da religião, se não devo fazer como faz Dostoiévski: a
defesa e propaganda da ideia de imortalidade da alma de forma a combater o
avanço das “ideias de ferro”, como ele denomina o ateísmo e o materialismo e
que seriam, em parte, o substrato cultural correlacionado ao aumento do número
de vítimas pela via do suicido, aqui
faço, como uma estratégia de prevenção, um elogio à dúvida.
Porque,
afinal, quando adentramos na densa floresta das questões humanas fundamentais,
das questões humanas mais profundas, das questões sobre as quais têm se
debruçado os pensadores de todos os tempos.... De verdade: nada sabemos.
E
mesmo daquilo que já sabemos, nem de tudo temos clareza e nem tudo nos deu
certeza. Há vida após a morte? O que acontece após o evento da morte do corpo
físico? Somos apenas corpos físicos complexos ou possuímos uma alma? Nossas
experiências subjetivas, pensamentos, sentimentos, emoções, resultam apenas de
atividade eletroquímica de nossos cérebros? O cérebro é quem cria a consciência
ou, ao contrário, a consciência existia antes de haver matéria? Quer saber, não
sabemos. O que temos são perguntas, inúmeras perguntas na ilha de consciência
em que existimos cercada por oceanos ainda insondáveis.
“É
necessariamente verdade que todas as coisas que afirmamos em ciência, todas as
conclusões que tiramos, são incertas, pois são apenas conclusões. São
conjeturas sobre o que irá passar-se e não podemos saber exatamente o que vai
passar-se porque nunca fazemos todas as experiências. É curioso como o efeito
sobre a massa de um pião a girar é tão pequeno que podemos dizer “bem, não faz
diferença nenhuma”. Mas chegar a uma lei correta, ou pelo menos a uma que se
mantenha após crivos sucessivos, requer uma tremenda inteligência e imaginação
e um completo remendo na nossa filosofia, na nossa compreensão do espaço e do
tempo. Refiro-me à teoria da relatividade. Acontece que os efeitos
insignificantes daí resultantes requerem sempre as mais revolucionárias
modificações de ideias. Os cientistas estão, pois, habituados a lidar com a
dúvida e a incerteza. Todo o conhecimento científico é incerto. E esta
experiência com a dúvida e a incerteza é importante. Creio mesmo que tem um
valor tão alto que se estende para lá da ciência. Creio que para resolver qualquer problema que ainda não tenha sido
resolvido é preciso deixar entreaberta a porta para o desconhecido. É preciso
manter aberta a possibilidade de não termos toda a razão. De outro modo, se
já temos uma ideia predefinida, podemos não conseguir resolver nada.
Quando
o cientista nos diz que não sabe a resposta, é um ignorante. Quando diz que tem
um palpite sobre o modo como as coisas vão funcionar, está inseguro a esse
respeito. Quando tem a certeza sobre o modo como as coisas irão passar-se e
afirma “aposto que é assim que tudo vai passar-se”, ainda continua em
dúvida. E para podermos progredir é
de extrema importância que saibamos reconhecer essa ignorância e essa dúvida.
É por termos dúvidas que nos propomos olhar em novas direções à procura de
novas ideias. ” (Feynman, Richard, O Significado de Tudo, Gradiva, Lisboa,
2001, pp. 11-37).
Bem,
se é esta a postura razoável que se deve adotar em um campo de pesquisas onde a
realidade, até certo ponto, é palpável e observável o que se dizer a respeito
do que possa ocorrer após o evento da morte do corpo físico? Não sabemos.
Pesquisas sobre a consciência, existência fora do corpo, reencarnação,
experiências de quase-morte, estão sendo atualmente capitaneadas pela ciência e
desenvolvidas por importantes centros universitários do planeta de forma a
ampliar o espectro do conhecimento humano sobre os limites da vida. Mas até o
momento, de nada sabemos. E embora uma visão popular atualmente predominante no
campo das Neurociências queira definitivamente responder que “você, suas
alegrias e tristezas, suas memórias e ambições, sua noção de identidade e seu
livre-arbítrio nada mais são do que a interação de um vasto conjunto de células
nervosas...” (Revista Veja); considerando a consciência humana como algo cuja
localização encontra-se no cérebro e que em um futuro bem próximo o mapeamento
neural da consciência será feito, tal como está ocorrendo com o código genético
de nosso organismo físico: na verdade o que temos são apenas hipóteses, quando
não uma hybris da razão.
“Existe
uma pergunta insidiosa que, nos últimos tempos, tem preocupado muitas pessoas e
que parece não querer calar tão cedo: será que somos apenas nossos cérebros? Um
punhado de genes em interação produzindo a ilusão de que temos um “eu”? O que
terá restado da subjetividade?
Essas
proposições são cada vez mais proclamadas pela mídia como conclusões
científicas definitivas e não apenas conjecturas, e talvez seja isso o que nos
inquieta mais. É da Neurociência que deriva a autoridade para sustentar essa
visão e, nesse sentido, podemos dizer que atualmente ela é a disciplina
científica que mais tem afetado a imagem que o homem tem de si. Dizer que o
nosso “eu” nada mais é do que o metabolismo do cérebro tem consequências
profundas, tanto do ponto de vista filosófico como do antropológico. Significa
sugerir que uma questão filosófica milenar, o problema mente-cérebro, pode ser
solucionada. Nossas mentes não seriam nada mais do que nossos cérebros. A
imagem socrática do homem de uma alma aprisionada a um corpo, que herdamos nos
últimos milênios de Filosofia, deveria agora ser abandonada.
(...).
Queremos o conforto de uma cultura da
resposta certa, na qual não existam brechas para a dúvida. (...).
Estaríamos caminhando para uma Neurofilosofia, que estaria se tornando a
ferramenta poderosa para extirpar a moléstia metafísica. Quem sabe, as próprias
dúvidas hiperbólicas da Filosofia nada mais seriam do que estados cerebrais
inoportunos, dos quais poderíamos nos livrar interferindo no metabolismo do
cérebro, provavelmente por meio de drogas poderosas. Afinal, já existem drogas
que induzem efeitos específicos, como é o caso das que produzem experiências
religiosas. Não queremos mais ser
incomodados por dúvidas insidiosas; o ideal da saúde, da mente sã, deve se
sobrepor à busca por respostas a questões incômodas do tipo “o que somos? ”,
“de onde viemos? ”, e “para onde caminhamos? ” (...). Mas as questões
metafísicas têm se mostrado recorrentes. Elas sobreviveram às diversas
demonstrações filosóficas de que são insolúveis. É o retorno do reprimido.” (Teixeira, João Fernandes) http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/60/artigo220185-2.asp).
E
essa atitude, pois, metódica, de dúvida – que não significa permanente negação,
mas liberdade de investigar oposta àquela posição que afirma e pensa que já
descobriu – não pode ser outra, até porque em sua origem histórica a Filosofia
e a Ciência surgiram por sentir profundamente o arcano e misterioso desse
universo em que vivemos e a nossa condição humana dentro dele.
E
dessa forma, se não conseguimos desenvolver uma religiosidade que, como um
fator de proteção possa fazer nascer e mantenha sempre jorrando as fontes de
resiliência desde nosso interior, constitui-se em um erro profundo –
respondendo as questões propostas acima – a convicção de que o Nada é o que
existe, ou pintar um quadro fabuloso sobre a vida após a morte: e tomar essas
equivocadas certezas como suportes cognitivos para pretender se autoeliminar.
Ora,
se não efetuamos a suspensão de conceitos, imagens e sentimentos prontos, quase
sempre de cunho niilista, sobre a realidade da vida, e da vida após a morte, e
não fazemos uma reflexão que nos leve a uma conclusão – que não pode ser outra
– de que a realidade sempre será mais ampla do que os “quadros” que formamos
dela... Enfim, se não escolhemos uma crença, permanecemos escolhidos pela
dúvida.
Temos dúvidas e é útil que as
tenhamos. Nas estações do trem de nossas vidas podemos nos movimentar para
adiante, para alguma forma de crença e fé, mas não podemos retroceder para a
estação da absoluta descrença. Porque pertencente à condição humana a dúvida é
o mínimo insuperável. E na estação da dúvida ou incerteza não há como não
descer. Das barreiras aí colocadas não há como ultrapassar.
Por
conseguinte, mesmo que passemos pela vida sem fazer essas perguntas
fundamentais, e o que é em termos filosóficos como ter os olhos fechados sem
nunca os haver tentado abrir; ao fazê-las – e, sobretudo ao considerar a
questão do suicídio em relação à vida após a morte – será preciso sempre
considerar a advertência final a seguir:
“Para
ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de saber, combinado à grande
cautela em acreditar que se sabe; também se deve possuir acuidade lógica e o
hábito do pensamento exato. Tudo isso, claro, é uma questão de grau. A incerteza, em particular, pertence, até
certo ponto, ao pensamento humano; podemos reduzi-la indefinidamente, embora
jamais possamos aboli-la por completo”. (Russell, Fundamentos de Filosofia,
p. 9).
Isso
porque o ser humano é o único ser para o qual sempre se colocará como problema,
o seu próprio ser. Daí a dúvida como estrutura constituinte de sua condição,
porque diferente da pedra, do vegetal e do animal por mais profundo que ele se
olhe não se vê; e por mais que venha a se conhecer, nunca saberá inteiramente
de si.
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João Fernandes: Afinal, O que somos? Disponível em: http://filosofia da
cienciavida.uol.com.br/ESFI/Edições/60/artigo220185-2.asp.
Teixeira,
João Fernandes. Filosofia do Cérebro. São Paulo: Edt Paulus,
2012.
Se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda, ligue para o número do CVV: 188 e procure ajuda especializada.
Parabéns por colocar um assunto tão silenciado pela sociedade... Que possa ajudar as pessoas numa direção de autoconhecimento. Como dizia Agostinho: conheça-te, aceita-te e supera-te.
ResponderExcluirNo meu ministério como padre vejo muito sentimento de culpa nas pessoas e que acabam perdendo a paz interior. Observo na imagem que tem de Deus bem negativa: tirano, castigador, irascível... E isso, proporciona muitos conflitos pessoais. Trabalho na perspectiva do amor e da misericórdia de Deus que vem ao encontro do homem dando dignidade.